20ago2017
20ago2017
[Sinestésico] Ponto de Observação, no plural
Por
João Moreno
Atrasado. Sou
recebido com um “Você perdeu metade da atividade avaliativa” da professora.
Toda a turma está em fila, na porta da sala de aula. Um aluno torce o nariz
quando me vê. Ele sempre torce o nariz quando me vê. Deve ser coisa da minha
cabeça, só pode. Encontro uma colega. “Temos que sair pela faculdade para
observar às coisas”, ela me situa, logo depois de revirar os olhos. A turma
aproxima-se da mureta, e do alto de um segundo andar, podemos ver o ‘bobódromo’.
Me recuso à pronunciar este nome, assim como me recuso à frequentá-lo. Agora,
escrevendo sobre, não consigo perceber de onde vem tamanho ressentimento. Olho
para os meus ‘camaradas’. Alguns exprimem cara de espanto, outros, de riso,
enquanto a professora nos circunda soltando alguns clichês. “Encontre um ponto
de observação”, repete, como num mantra irritante.
Lá embaixo, chega
a menina do vestido listrado. Alta. Loira. Ombros largos. Caucasiana. Estonteantemente
linda. A costura do seu vestido abre-se na altura da coxa esquerda. Usa um All Star branco, cano baixo. Existe coisa mais bonita que mulheres de tênis
branco? Tatuado em seu braquiorradial esquerdo, algum símbolo. Com uma
imprecisão jornalística, afirmo: ‘mandala’. Em seu bíceps braquial, algumas
poucas frases em preto que contrasta, de maneira magnífica, com o seu tom de
pele. “Incomoda vocês? Incomoda?”, a professora pergunta. A mágica se quebra.
Descemos a
escada. Me sinto um estranho no ninho. A psicologia behaviorista explica:
influência de grupo, ou como sentir-se à parte em um grupo coeso. Amaldiçoo os
“mais cinco minutinhos” daquela manhã. Ou os quinze. Ou a ½ hora. Lembro,
então, que dormi abraçado à minha esposa depois de uma noite de brigas. Valeu à
pena. Ouço a voz da professora e volto à realidade. “Encontrem um ponto de
observação”, em sua cantilena. Adianto-me à uma teia de aranha fixa à grade
que separa a Biblioteca e a Secretaria. Procuro inutilmente por sua moradora.
Assopro-a, ao mesmo tempo que sinto o poder em subjugar os mais fracos.
A professora nos
circunda, com mais ‘clichês exotéricos’. Olho para cima. A destoar das demais, uma sala encontra-se com
as cortinas jogadas a um canto, denunciando ser aquele o nosso reduto. “Foque
naquilo que te chama a atenção”. Do lado inferior direito daquela janela, escrito
à mão e giz branco, a palavra “XOTA” pode ser lida em uma universidade
católica. Tento segurar o riso e lembro-me de colocar a cena em meu texto,
afinal, é óbvio que escreveremos um texto. Parados naquele beco, de frente a
secretaria, a professora chama a atenção para os vidros, agora translúcidos,
daquele lugar, a representação da burocracia de uma universidade burocrática.
Penso ‘alto’ e “definição de inferno” escapa de meus lábios. Ela me olha,
assustada. Seus olhos são bonitos, reparo.
“A burocracia”,
respondo, tentando, inutilmente, parecer normal, ainda ressentido por algo, tema de outro texto. “Mas se for assim
não funciona”, ela replica, talvez ao tentar defender seu local de trabalho, ou,
então, colocar um ponto final na discussão. Ela se afasta. “Velho, essa
universidade é tão burocrática que, para você espirrar, você tem que abrir um
processo”, começo, imaginando-me no ato de jogar uma bomba na Secretaria, bem
ao estilo Bane Dorrance, de Batman Rise. Meu amigo militante, pego
de surpresa em tanto rancor, concorda. “Culpa dessa Máquina Pública inchada,
gigante”, continuo. “Os países liberais são burocráticos, o capitalismo é
burocrático”, rebate, com o seu sotaque característico. Tenho um bug cerebral. Relembro um artigo. No
Brasil e o seu ‘capitalismo estatal’, gasta-se, em média, 119 dias e R$
2.038,00 reais para abrir-se uma empresa. No Chile de economia liberalista, pode
ser feito em um dia. E de graça. Abro a boca para rebater. Fecho-a, com
preguiça.
Pausa. Recomeço a escrever no meu computador, dois dias
depois.
Retornamos a
sala, e não consigo mais prestar atenção às coisas, visto que aquela discussão
me consome. Adianto-me aos colegas e paro diante das janelas, a mesma que
carrega a XOTA, o palavrão. Encontro, dois andares abaixo, o ponto preciso em
que encontrávamo-nos a pouco. Procuro pela teia de aranha. Sei exatamente onde
se encontra, pois gravei que do seu lado direito encontrava-se uma pequena
mancha de tinta. Sei também que é a sétima pilastra, a contar do
estacionamento. A professora chega. “O Moreno
e a Maria Tereza me farão um favor por terem chegado atrasado”. Fico indignado.
“Meninos, fechem a janela pra mim, por favor”. Dou um suspiro aliviado. “Nossa,
vou colocar isso no meu Lattes”. Na hora, sinto que minha fala soa um pouco
agressiva. “Nossa, podemos encontrar
coisas mais interessantes para preencher esse currículo”, afirma a
professora. Escrevo em negrito com o
intuito de chamar a atenção para a sua fala, professora!
“Sentem-se nos
mesmos lugares de antes”. Uma movimentação que não me diz respeito tem início.
“Comecem a escrever sobre o que vocês observaram. Se precisar, foquem um ponto
de observação para se guiar durante a narrativa”, diz. Abro o bloco de notas do
meu celular, velho de guerra, fábrica de Contos. Hoje em dia não consigo mais
utilizá-lo, assim como o papel e a caneta, já que não mais acompanham a
velocidade de minhas palavras, a esquizofrenia de minhas linhas.
“Observo os colegas. A professora fala
pedindo foco, meio impossível. Observo um grupo no meio do pátio, eram três
pessoas. Agora são quatro. Chegam mais
duas. O gênero aqui não é importante. O
que importa, pra mim... “.
“Moreno,
você vai sempre escrever no celular?”, interrompe a professora. “Professora,
não consigo mais escrever à mão”, replico. Percebo, agora, que deveria ter permanecido
calado. “Eu queria, sinceramente, que vocês tivessem esse contato com as
palavras, com o papel, para fluir melhor o texto”, insiste, talvez certa,
talvez não. Penso em lembrá-la que a sua fala trata-se, apenas, de
idiossincrasias, nada mais, e por isso, quem as utiliza aparenta estar sempre
certo. “Vai ter momentos dentro do jornalismo que você terá que escrever à
mão”, afirma. Penso então no jornalismo-burocrático-redacional praticado hoje
em dia. “Alô, aqui é o João Moreno, do jornal POPULAR, gostaria de falar com o
superintendente do IBAMA. Aguardo, sim. Obrigado!”. Lembro, também, que nas
redações dos grandes grupos comunicacionais, quem (realmente) faz jornalismo
são os assessores de Imprensa por meio de seus releases - Jornalismo na
Fonte ou Notícia Prêt-à-Porter: a
substituição do jornalista pelo assessor de imprensa dentro das publicações do
jornal Dário da Manhã (Lima Neto, 2017). “Sabia que esse seu celular pode
intimidar as suas fontes?”, continua, implacável. Penso, mas não respondo que,
quando entrevisto alguém, peço sempre permissão para gravar as entrevistas - Ipsis Litteris pra sempre! – para atentar-me
aos detalhes
“Eu tive um acidente e fui atropelado. Estava
parado, de moto, em Campinas e tive o meu pé direito esmagado por um carro.
Fiquei 34 dias no hospital”, conta o homem, envolto em sua blusa de frio
listrada, com a cabeça agasalhada por um boné surrado, apoiando-se com
dificuldade em sua perna esquerda. A perna direita acidentada, ao andar,
arrastava junto a si com dificuldades” (LIMA NETO, 2017).
Por fim, ela cita Capote
e Talese. Dou-me por vencido. Antes
de dirigir a sua mesa, fala algo direcionado a mim, em voz baixa. Pela
empolgação de sua face, e do seu sorriso de ‘orelha-a-orelha’, deve ser algo
muito interessante. Não consigo entender o que diz. Fico envergonhado em pedir
que repita a frase e aceno assertivamente com a cabeça, esboçando um
meio-sorriso.
Ao escrever, é
natural, pra mim, fazê-lo mentalmente, com parágrafos, sequências lógicas e,
quase sempre, o final. Penso, e aqui falta-me validade teórica para a afirmação,
que um texto pode ser de todo ruim, mas o final deve ser sempre impactante,
sempre. Pensava em terminar este texto com uma resposta mental à professora Carolina
Goos. Em minha cabeça, ao citar Capote
e Talese, replicaria que o escritor Stephen King, detentor da National
Medal of Arts, e com pouco mais
de cinquenta romances publicados, só escreve em seu computador pessoal, em sua
poltrona favorita, em um local preferido, afastado das pessoas. “Ah, mas ele
não é jornalista”, a professora responderia, em minha imaginação. E é aí que
responderia, em um argumento sofista, que ele fora o editor do jornal de sua
escola no Ensino-Médio.
Hoje, entretanto,
dois dias depois dos acontecimentos aqui narrados, e na data que comemora-se os 30 anos
de despedida do poeta Carlos Drummond de Andrade, eu, prolixo que sou, e não chegado
à poesia - e assumo, aqui, esta falha no caráter -, percebo que estou longe da
sua 'A Palavra', aquela que "Que resumiria o mundo e o substituiria".
Quatro laudas depois, coloco um ponto final em um texto – que espero estar embebido
em jornalismo literário, não do Talese ou Capote, apenas do João Moreno mesmo -,
não antes de pensar. "Essa disciplina vai ser do caralho!".
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Observação. Substantivo feminino. 1. Ato ou efeito de observar(-se). 2. Ação de considerar com atenção as coisas, os seres, os eventos. Reprodução/Internet. |
4 comentários
Olá!
ResponderExcluirGostei muito do seu texto e acho que a forma de escrita evolui, e isso não é negativo. Parafraseando Karnal, talvez a única vantagem de escrever à mão seja em uma ilha deserta para solicitar socorro com as letras SOS.
Francine, se soubesse dessa frase, acho que ganharia a discussão com a professora haha. Obrigado pela leitura e comentário, volte sempre, de preferência, aos domingos pela manhã! (que às Três Leitoras não me ouçam...)
ExcluirPuxa, que texto legal. Imaginei toda a cena se desenrolando na minha mente. Me lembrei da história de King (citado acima), que mesmo depois de formado na faculdade teve bastante dificuldade para entrar e fazer sucesso no universo da escrita. E hoje ele é aclamado no mundo todo. Por isso penso que é importante ter essa identidade única, como você falou "espero estar embebido em jornalismo literário, não do Talese ou Capote, apenas do João Moreno mesmo".
ResponderExcluirAna Paula, se você conseguiu imaginar às cenas, então o meu objetivo foi alcançado com sucesso! Sobre o King, já leu o livro dele ' Sobre a Escrita"? É lindo, e fala muito disso também. Um dos meus preferidos pra sempre! Obrigado pela leitura, aguardo você no próximo texto, ok? (27/08, geralmente às nove da manhã, quando não me confundo com o programador do Google). Abraços ;]
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