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[Sinestésico] Eu ainda não consigo ver um Testrálio - Três Leitoras

10set2017

[Sinestésico] Eu ainda não consigo ver um Testrálio

Por João Moreno

"A morte é apenas um outro caminho que todos temos que tomar. A cortina cinza desse mundo se enrola e tudo se transforma em vidro prata. E ai você vê praias brancas, e o além, os campos verdes, longínquos sob um belo amanhecer".  

I
            Eu ainda não consigo ver um Testrálio. O relógio do carro marcava 01:32 a.m., em seu tom alaranjado habitual. O sedan, um peugeot 207 passion, alcançava os 70 km/h, ao deslizar pelas ruas escuras e desertas do Setor Oeste; Rua R-11, R-9, avenida Perimetral, Goiânia. “Acho que a ligação que você tem com o Pedro vem muito da história em comum que vocês têm”, ela diz. No banco do passageiro, com os pés escorados no porta-luvas, não respondo, com os olhos vidrados em algum ponto distante.
 “Você nunca entrou no quarto dela, entrou?”. Ao referir-se à ela, falava de uma grande amiga, a qual a pouco tempo visitávamos, ela e o seu filhinho de cinco anos. “O quarto está cheio de fotos dele”, dele, leia-se marido, que falecera há quase três anos, vítima de um infarto aos 33 anos de idade. Uma pausa. “Você tem lembranças do seu pai?”, ela quer saber.
Jamylson Nunes Moreno faleceu aos 29 anos, vítima de um acidente de carro. Não usava cintos de segurança, algo muito comum no início da década de 1990. Dirigia em alta velocidade; seu carro capotou em uma curva, foi arremessado através do para-brisas. O veículo, de alguma forma, acabou por esmagar seus pulmões. “Ele morreu na minha frente, no hospital. Pedia água”, disse certa vez minha mãe, a então mulher do Jamylson. Deixou dois filhos pequenos, um de dois – quase três, e o mais novo, eu, que então tinha um ano e dois meses. “Ninguém chorou mais que Jamilson [sic] nesses dias...depois ele também se foi...”, escrevera há pouco, em minha timeline, um amigo de meu pai, ao compartilhar comigo uma reportagem sobre a despedida de Ayrton Senna.
Digo que não, não me lembro. Digo, ainda, que é complicado sentir falta de algo que nunca se teve. Não tive um pai, e quase sempre a figura paterna fora preenchida pela presença de meu irmão um ano e sete meses mais velho que eu, nenhum dia a menos ou a mais. “O Pedro* está naquela fase de não aceitar a morte do Claudinho”, ela recomeça. “Disse pra Ingrid que vai construir um foguete e vai lá no céu buscar o pai dele. A Ingrid falou que não teria como, que Deus sabe o que faz...”. Interrompo-a. “Se tem alguma coisa que não faz sentido, é falar “Deus sabe o que faz”, falo, puto. "Deus tem um senso de humor bem cretino, não é mesmo? Qual a lógica de um ser onisciente e benevolente tirar o convívio de um filho e seu pai, e ainda afirmar “foi o plano de Deus”. Cara, que plano é esse? Vocês podiam usar um argumento melhor para confortar às pessoas, não?”. Viramos à direita e descemos à Rua P-3, no setor dos Funcionários.
Paramos em uma descida, e no sinal vermelho que conduz à Alameda P-2, prossigo. “Se fosse o seu filho, o que você faria?’, ela pergunta, com o pé na embreagem para o carro não ‘apagar’. “Simples”, começo. “Filho, a única certeza que temos é a da morte”.

Morte. Substantivo feminino. Óbito ou falecimento; cessação completa da vida, da existência. Extinção; falta de existência ou ausência definitiva de alguma coisa: morte de uma espécie; morte da esperança; morte de uma planta. [Figurado] Sofrimento excessivo; pesar ou angústia: a perda do filho foi a morte para ele.

            “É a lei natural da vida. Viemos ao mundo com um propósito, e continuamos a viver através daquilo que construímos, de quem tocamos ou transformamos”, repito para ela uma das minhas muitas idiossincrasias, como verdades absolutas de lugar nenhum. O sinal abre, avançamos. Uma música dos anos 1980 embala nossos pensamentos. Durante o caminho, não trocamos mais nenhuma palavra.

II

Eu ainda não consigo ver um Testrálio. Acordo pouco antes das nove da manhã, tomado por uma alergia desgraçada. Como de costume, vou direto ao celular olhar as redes sociais. Duas mensagens. “Você ficou sabendo”, dizia à primeira, do meu irmão. Uma hora antes o meu amigo informara-me. “Cara, a Lucélia faleceu”. Nosso mundo desabara.
O ano era 2004, estávamos na 6° série e estudávamos todos juntos. Ainda hoje, mantemos contato, mês sim, o outro também. A amizade de colégio sobreviveu. Eu dormia no sofá da sala quando ouvi uma voz particular. Lucélia tinha uma voz fina, doce e, na medida do possível, calma. Naquela tarde, entretanto, chorava ao conversar com a minha mãe. “Ele virou um rebelde, começou a usar bandanas, pintar o cabelo de rosa”. A semelhança com a personagem Chi Chi, do anime japonês Dragon Ball Z, é gritante. Minha mãe tentava consolá-la, acho que sem sucesso. Para a alegria de Lucélia, a fase rebelde de seu filho passaria e, hoje, o então menino virou pai de família, muito bem, obrigado.
Adiantemo-nos no tempo. Fevereiro de 2015, manhã de quarta-feira. Nunca estivemos tão bonitos. A data pedia: nosso amigo Leandro, que conhecemos aos 13 anos, hoje, aos 23, assinaria os papéis do casamento. Lucélia estava lá, com um sorriso de orelha à orelha. Loira, com os cabelos curtos lisos, vestia uma calça preta, cinto largo, de coro, e uma camiseta com estampa de ‘onça’. Já em casa, preparou-nos uma lasanha deliciosa. Entre uma garfada e outra, falou. “Nossa, João, como você está bonito”. Eu, que naquele momento estava bonito por fora, em trevas por dentro, senti-me confortado. Sem saber, Lucélia tinha o dom de confortar às pessoas com pequenos gestos.

III

“Deite, A sua doce e cansada cabeça
A noite está caindo
Você chegou ao fim da jornada
Durma agora
E sonhe com aqueles que vieram antes
Eles estão chamando,
do outro lado da praia distante”

Eu ainda não consigo ver um Testrálio.  Até os 23 anos de idade, nunca fora a um velório, o que não é ruim, pelo contrário.  É segunda-feira e, extenuado, tento dar vida a esse texto há quase duas horas; pela primeira vez em muito tempo não sei o que escrever.
A literatura te prepara, de uma maneira ou de outra, para a morte. O fatídico e inexorável encontro, o único, aquele que, desde o primeiro sopro sedento de vida que damos, é certo em nossos horizontes. Seja com a morte de Saramago, coadjuvante que apaixonar-se-ia por seu protagonista, ou, então, a morte de Rowling, que abraçaria nosso personagem principal como um melhor amigo, Ela, companheira de cada caminhar, está aqui, aí, do seu lado, agora, enquanto você percorre os olhos por estas linhas.
A pouco tempo, descobri que um dos lugares preferidos de se estar é em um cemitério. Não pelo lado mórbido da coisa, e talvez não há como deixar de ser mórbido ao escrever e rescrever esta frase. Por favor, não me entenda mal. Refiro-me não ao sofrimento dos parentes, daqueles que ficam em desgraça diante de um corpo inanimado de uma alma que já partira, não. Atento-me para a paz daquele lugar. “Aqueles que podem nos fazer mal está do portão para a rua”, diria um amigo, em nossa vigília, na noite de sábado (9).
Vasconcelos; Alencar; Pereira; Batista. Maria; Paulo; Alexandre. 1957. “Caralho, amor, essa mulher nasceu em 1888, e viveu mais de cem anos!”, exclamo. Em alguns túmulos, fotos envelhecidas pelo tempo – outro senhor de todas às verdades –, ainda resistem entre às ervas daninhas ou às flores frescas, a depender do pagamento da taxa de manutenção do local. “Quantas histórias!”, penso eu, fascinado por tanta vida que aquele lugar, reduto da morte, carrega junto a si. No chão, uma placa com as mesmas datas de nascimento e morte. Seu nome era João. Ao lado, uma foto, grande, desbotada, de quase 30 centímetros, nela, um bebezinho e o seu chapéu vermelho; 20 dias de diferença separava a data de início e o ponto final daquela história. Seu nome, também, era João.

IV

Porque você chora?
O que são essas lágrimas em seu rosto?
Em breve você verá
Que todos os seus medos irão passar
Seguro em meus braços
Você está apenas dormindo

Eu ainda não consigo ver um Testrálio. Lucélia era muito religiosa e tinha uma fé inabalável. Viúva desde muito cedo, teve uma história de vida parecida com a de minha mãe, talvez envolta em mais dificuldades. Criou dois filhos, e ensinou com todas as letras o significado de hombridade e caráter aos meninos. Conseguiu a sua tão sonhada ‘casinha’ depois de muita luta e, como mãe, sempre quisera os filhos próximos. Mas eles crescem, é a vida, e talvez ela tenha demorado a entender isso.
Lucélia era batalhadora. Já foi dona de restaurante, de lanchonete, e como forma de ganhar dinheiro e manter-se ativa, chegou a vender balas e doces dentro do ônibus. Antes de tudo, foi um exemplo. Justamente por ser religiosa, em seu velório, o pastor da Igreja que frequentara fora chamado. “Todos deem às mãos, vamos fazer uma breve oração”, disse.
Volto aos meus quatro anos de idade, quando sou obrigado a ouvir os discursos intermináveis dos adultos, daquele mundo distante que um dia ainda faria parte. Volto à realidade; olho para o Miguel, filho de Lorran, neto da Lucélia; sua inquietação é a minha. O Pastor finalmente para, abre-se espaço para as falas dos ali presente.Tadeu toma a palavra, vai bem. “Sempre considerei-me o terceiro filho da Lucélia”, diz. Segue-se o tio. Preparo-me para falar, meu coração acelera. Lorran toma a frente, sereno, diz tudo que tinha para dizer, com muito mais amor e carinho. Leandro, filho mais novo, com os olhos voltados para a frente, à mão tocando o rosto da mãe, começa. 
“Ela foi o maior exemplo de mãe, mulher e guerreira que já vi”, diz, às lágrimas caindo de seus olhos semicerrados. Sua dor dilacera-nos; é inenarrável vê-lo ali, com a dor que contamina aqueles que ficam, os vivos, incapazes de lidar com tamanha desgraça dos seus mortos. “Gostaria de pedir uma salva de palmas para minha mãe, pela mulher que ela foi”, termina, num dos gestos mais bonitos que já presenciei em meus 24 anos de vida. Ainda consigo sentir aquele momento, às lágrimas quentes caindo por sob às mãos, que empolgadas, encontravam-se com toda a força uma com a outra. Não sei quanto tempo durou, só sei que ficamos ali, suspensos no tempo, com os ecos a expandir nossa gratidão.
Por fim, “Lucélia, finalmente descansou, não é mesmo? Sei que está aqui, olhando por nós. Por favor, Lucélia, mande um abraço para o meu pai, pode ser? Ah, e não se esqueça! Diz para a Vovó que eu ainda vou dar orgulho pra ela! Lucélia, obrigado! Lucélia, até breve!”, digo, enquanto seguro suas mãos e abraço, com força, o seu filho.

"A esperança se desvanece
No mundo da escuridão
Pelas sombras caindo
Fora das memórias e do tempo
Não diga
"nós viemos agora, para o fim"
Praias brancas nos chamam
Você e eu nos encontraremos de novo"

Nota de falecimento;

É com pesar que comunicamos o falecimento de Lucélia Bittes, 55, na manhã deste sábado (9), no Hospital de Doenças Tropicais (HDT), em Goiânia. O velório será realizado na sala 3 do cemitério Jardim das Palmeiras, rua Armogaste José da Silveira, n° 1000, setor Centro Oeste, também em Goiânia - próximo ao colégio Gonçalves Lêdo -, a partir das 19 horas.
Lucélia foi mulher, mãe, guerreira. Viúva, criou seus dois filhos com tenacidade, mas sempre com um sorriso no rosto. Sempre disposta a ajudar e estender às mãos ao próximo, foi detentora de uma fé inabalável; até o fim. Aos familiares, amigos e para todos aqueles que ela, de alguma forma, tocou e transformou em vida, resta-nos o consolo de que agora, mais do que nunca, 'dona' Lucélia querer-nos-ia, unidos, no amor. E que vivamos com a sua imagem como referência: feliz; com o sorriso no rosto que lhe era comum e natural; e sempre munida de uma palavra amiga nos lábios, disposta a inundar de amor à vida do seu próximo.



* Foram usados nomes fictícios para preservar a identidade das fontes. 

"Uma pessoa que amávamos se transformou em estrela e está, agora, perto de Deus". Imagem de Internet. 

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