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[Sinestésico] Reticências; Aspas - Três Leitoras

01out2017

[Sinestésico] Reticências; Aspas

Texto: Wigvan Pereira; Edição e publicação: João Moreno

“Velho, o que me diz?”, pergunto, ao mostrar um print de um rascunho de um post do blog. É tarde da noite, e entre um parágrafo e outro de algum trabalho acadêmico, conversamos sobre a vida, a morte e além. “Sobre? [Risos]. O que vai ser publicado? [Mais risos]. Passo a me perguntar se sou realmente engraçado ou se isso se trata, apenas, de mais um cacoete linguístico. “Não são meus nudes, né?”, pergunta, com o seu senso de humor particular, próprio, que, às vezes, só ele entende. “Tem a ver com um e-mail, uma espécie de ensaio sobre Literatura”, respondo. “Dá pra escrever um livro dessas conversas”, falo, e revelo minhas futuras pretensões. Sim, as conversas são mesmo sensacionais.
Uma pausa, um outro texto. “Obrigado!”, digo, extremamente tocado. “Publique em algum livro, faça um livro só pra este texto”, por favor!”, imploro, embasbacado e, também, com um pouco de inveja. Ele escreve bem, muito bem, com poética e figuras de linguagem próprias de um realismo mágico latino-americano. Pergunto-me; algum dia escreverei tão bem assim? 
“Menino, calma. [Risos]. Você sabe que é possível que receba respostas não legais, né?”. Pergunto o porquê. “Ah, eu falo umas coisas meio polêmicas naquele texto. Tô meio iconoclasta. [Mais risos]. Mas se você aguentar os possíveis rojões, eu não me importo, tô acostumado a dar a cara para bater – e ser batido”. Sei, sabemos, na verdade. Mas para uma amizade guiada, à priori, pelas palavras, abdicar essas, seria, mais do que certo, uma blasfêmia aos deuses da Literatura. 
O e-mail abaixo tem o nome de ‘Reticências’; ou uma troca de correspondências em um período conturbado na vida do Wigvan. Eu, recém-amigo, ao fazer o que tinha que ser feito, ofereci um abraço. Ele aceitou, agradeceu. Ofereci, também, um texto, talvez o mais pessoal que escrevera até então.
Wigvan Pereira, 27, doutorando em Literatura, crítico literário (título que se negará a assumir com todas às forças), detentor de 4 mudas de roupas e de um sentimento draconiano em relação ao gasto sub-humano com dinheiro, respondeu. Leia, vale à pena. Leia, e se o que te move é o amor pelas palavras, após a leitura sair-se-á daqui um pouco mais próximo dos grandes. Também, mais distante de nossa habitual mediocridade.

Wigvan <umemailfictícioaqui@gmail.com>
Segunda-feira, 28 de agosto de 2017, 9 horas e 9 minutos

Reticências 

Pode empolgar, empolgue-se sempre. É a empolgação que faz a gente criar um pouco de sentido para o absurdo constante que é a vida. Gostei muito do seu texto por vários motivos. E se você acha que o primeiro motivo é eu ter sido citado –  que tipo de egocêntrico você acha que sou? -, acertou. Fiquei emocionado aqui com a sua citação, de verdade. Eu sou manteiga derretida, você já sabe, então vou te poupar de descrições de reações fisiológicas para não descambar na pieguice que eu tanto amo cometer. 
Sim, esse foi o primeiro motivo por eu ter gostado do texto, só que não apenas pelo afago ao meu ego, tão constantemente maltratado que até achei melhor desistir de ter um. Parece iluminação espiritual, mas é apenas preguiça. Você não cita só a mim, cita mais um monte de pessoas, seu amigo, professores… E isso diz muito sobre você e eu gostei de saber o que isso disse sobre você. É bonito. As relações que estabelecemos sempre nos ensinam muito, mas poucos são os que reconhecem. Somos obras de arte feitas por todas as mãos que nos tocaram, não me parece muito justo querer assumir a autoria de si sem prestar tributo a todos aqueles sem os quais não seríamos quem somos.  
Segundo ponto que gostaria de comentar é sua rebeldia com as regras, críticas e correções. Bem, tenho muitos pensamentos sobre isso e sem querer parecer a tia velha que dá conselhos – afinal, eu devo ser no máximo dez anos mais velho que você – não quero ser tratado como tia velha, risos -, vou aproveitar para deixá-los aqui. 
Escrita é técnica, dizem todos os manuais de escrita. Sente-se, escreva, corte. Tire advérbios. Não repita palavras. Cuidado com as vírgulas. Frases curtas, por favor. Parágrafos, idem. A primeira frase é a mais importante, escreva uma primeira frase de impacto. Releia. Corte mais uma vez. Escrever bem é saber editar. Daí eu pergunto: para onde vai a poesia da coisa? Para o saco. Para onde vai a possibilidade de gaguejar em sua própria língua, em conferir charme, em deixar um traço seu que qualquer um, quando ler, vai reconhecer naquilo seu rosto? 
E disto eu tenho certeza: quem repete essas regras como verdades absolutas pode o ter lido pouco ou ter lido no modo automático, apenas para fazer check-in intelectual. Se a gente lê com olhos atentos, vai perceber que os livros mais especiais não seguem essas regras. Escrever é técnica, mas é preciso mais do que juntar palavras segundo as leis da gramática para se produzir sentimento. Sentimentos surgem nas arestas. No improviso. Nos solavancos. Erros só são erros se cometidos de forma não-intencional, [risos].
De todas as minhas birras, essa história de não repetir palavras é a segunda maior, logo após ao já mencionado clichê do autor-autobiográfico. Não acredito em sinônimos. Palavras são exatamente o que são. Uma palavra não pode ser substituída por outra impunemente. A gente percebe isso quando tenta traduzir. Exemplo clássico, o tal do cativar do pequeno príncipe que acaba gerando um sentido diverso do sentido em francês. Eu ia te explicar, mas fiquei com preguiça e joguei no Google porque sempre há alguém que disse antes de mim qualquer coisa que eu possa falar, e achei um texto bem melhor do que eu saberia escrever.
Vi uma entrevista uma vez do seu bi-xará e um dos meus autores preferidos, João Cabral de Melo Neto, em que ele dizia exatamente isso, sobre a insubstituibilidade das palavras e, desde então, eu a uso como álibi para quaisquer discussões. Uma pena que nunca mais tenha encontrado esse vídeo. Pausei o e-mail por quase uma hora para procurá-lo. Será que sonhei? Fiquei na dúvida agora e acho que pode ter sido o Ariano Suassuna, mas não quero corrigir o parágrafo porque suprimir esse movimento de pensamento me parece desonesto. Acho que juntei a entrevista do João, porque sempre emendo o meu manifesto a favor da repetição de palavras com meu manifesto a favor da concretude verbal, com essa do Suassuna, mas tô com preguiça de vê-la agora para ver se tem a citação sobre sinônimos, risos.
Você disse que eu podia me alongar no e-mail e eu tô abusando da sua boa vontade com divagações. Mas resumindo é isto: eu penso que a gente só deve ter cuidado de não repetir palavra quando corre o risco de gastar uma imagem. Vou dar um exemplo, usando aquele seu texto do sorriso. Se fosse eu a escrever – veja bem que não estou dizendo que você está errado ou que isso deixa o texto ruim -, eu economizaria na palavra “sorriso” para dar mais força ao fim, onde ela é, de fato, necessária.
Mas aberrações como substituir “guerra” por “batalha”, como um editor fez uma vez com um texto meu apenas para não repetir “guerra” é um crime contra a clareza. Clareza em primeiro lugar, beleza em segundo. Porque de nada adianta a gente criar uma coisa bonita se ela fica no escuro do não-entendimento. A língua portuguesa já é muito ambígua sem a gente incorrer nessas substituições forçadas.
Eu tinha mais trezentas mil coisas para comentar, mas estou escrevendo este e-mail há mais de duas horas e você já deve estar cansado da minha voz. Eu sou tagarela, eu sei. E pode ignorar tudo que eu falei até agora. Mas não ignore o que vou dizer agora: você tem feito um bom trabalho. Mais, seja tão avesso às regras quanto quiser =P.
Respondendo a uma pergunta que ficou jogada no espaço – eu me desconcentro, desculpa. Com muito dinheiro eu faria o mesmo que faço com pouco dinheiro: investir em conhecimento. Sacrifico muitas facilidades e prazeres por isso e não me arrependo. Daí, já emendo um convite para você vir à minha casa, tendo consciência de que eu não tenho dinheiro e moro numa casa simples, praticamente uma sepultura de móveis velhos, e em um bairro longe, e eu cozinho algo para você. | É estranho chamar uma pessoa com quem você ainda não conversou pessoalmente para a sua casa? Eu não sou muito bom em jogos sociais e gosto de receber pessoas e de cozinhar para elas. O que não significa que eu cozinhe bem, é importante frisar.
E, por fim, gostaria de comentar algo que penso sobre arqueologia. Acho que quem não vai ao rabo das coisas e das palavras não consegue dar um passo sequer adiante, apenas repisa o chão onde se plantou, na esperança de um futuro que o resgate. A busca pelaarché, aliás, foi o que moveu os primeiros filósofos.
Desculpa ter sido tão demorado e prolixo e chato. Wigvan de raiz.

Abraço,

POST SCRIPTIUM
“Amigo, no seguinte trecho do último parágrafo: “(…) Acho que quem não vai ao rabo das coisas e das palavras (…)”, você queria dizer “cabo das coisas”, né?”. “Não, quis dizer rabo mesmo, [risos], eu adoro essa expressão. Acho rabo uma palavra tão bonita e tão subestimada”, responde, saindo pela tangente, com uma resposta à La Wigvan Pereira. “Isso vai como P.S.!”.  


Se conseguir pensar numa imagem melhor para um post genial, na opinião deste medíocre editor, é claro, comente aí embaixo. Imagem de Internet. Reprodução. 

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1 comentários

  1. João, você como sempre sensacional... Termino de ler e fico aqui refletindo sobre tantas coisas... Acho isso simplesmente incrível!

    Obrigada!

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